domingo, 1 de novembro de 2009

Amor de cão


Eu já me senti produto de armazém, de mercadinho, de conveniência.

Já me quiseram assim a qualquer custo, como criança que pede bala pra mamãe.

E eu era essa goma de mascar. Toda rosa e cheia de açúcar.

Quem é que não sabe que tudo fica um pouco sem gosto depois de algum tempo na boca?

De muito doce, o paladar pede salgado e depois ácido.

Esse amor de prateleira, de gôndola, de rotisseria, passa rápido que nem o apetite da gente.

Eu nunca fui muito dessa coisa de consumo de gente. De achar que era um brinquedo com uma função interessante. Quem não sabe que depois de um tempo acaba a pilha? E dá preguiça de comprar outra...e fica lá o boneco largado, com cabelo espigado.

Pra mim, certo ou errado, o meu amor é meio cachorro, confesso. Meu amor abana o rabo, lambe a cara do outro e dá a pata. Aprende truque novo só pra impressionar e não tem muita vergonha na cara.

Esse amor de cão não vê defeito, fica junto e pede carinho em momentos inoportunos.

Sai derrubando tudo e olha com cara de pedinte.

Mas cachorro também morde, precisa de vacinas e quando sai da coleira corre pra rua. Pula em gente estranha, sente ares de gente ruim, rosna, ataca.

No final das contas, esse amor acaba sendo mais amigo, mas sem muito orgulho. Amordeclarado e barulhento. É um amor que uiva, que agora, que deixa pegadas por onde passa.

Vou evoluir, quem sabe, para o amor felino. Bem mais independente e mais bonito. E quem é que nunca implorou um carinho pro gato, só porque ele é tão difícil?


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Resgate e futuro



Eu quase tinha me esquecido do David Bowie.
Eu quase tinha me esquecido do que suas músicas me despertam.
Por que a gente se distrai desses prazeres?
Ninguém em sã transcendência fica imune a Bowie.
Adoro a loucura natural, que salta dos poros, das letras, do ritmo. Se fosse muito intencional não caberia tanta admiração.
Estou feliz. Feliz porque eu assisti um vídeo dele e tive um flashback. Funcionou como um resgate emocional e eu tão numas de novos planos e novas possibilidades. Meio que pisando num laço divisório como se minha existência se refizesse nesse momento atual.
Acho que é essa carga absurda de significados que vejo, sinto e ouço é que aumentam tanto a minha fé num futuro maior, mais bonito.
Eu descobri que preciso de alguns resgates para me fortalecer.
Descobri que preciso de Bowie e mil outras coisas que me fazem um bem danado. Preciso disso tudo em doses indecentes.
Semana passada tomei um porre de Coverdale. A voz mais natural do mundo, como a loucura de Bowie.
Nessa música se funde passado e futuro e novas associações.
Tou feliz demais por isso também.
Ás vezes a felicidade é simples de doer.
Rebel rebel...

http://www.youtube.com/watch?v=QDetQ18fw5Q

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

As cartas que eu nunca entreguei

Eu poderia encher uma gaveta. Um espaço na cômoda para elas.

Quase todas, eu perdi.

Cartas, mil cartas que eu nunca entreguei.

Por que elas não saíram de casa? Por que elas não foram endereçadas?

As cartas, todas as cartas que eu nunca entreguei, são quase anônimas se eu não as soubesse. Se me faltasse a memória, mas não falta. Talvez eu já soubesse, antes de começar a escrevê-las, que elas jamais seriam lidas por outros. Quem sabe elas não fossem cartas que apenas precisavam ser escritas, para que houvesse apenas a certeza de que certos sentimentos existiram e só a mim diriam respeito?

As cartas que eu nunca entreguei eram denúncias. Funcionaram como um remédio, paliativo de alguma dor ou excesso. Elas eram talvez, cartas para mim mesma. Organização de algum caos emocional.

Mil vezes chorei relendo as cartas que escrevi e depois rasguei. Talvez parte de mim lamentasse minhas perdas. A parte que ainda pensa e pondera. E essa exata parte é que não permite que essas cartas partam. É a minha fatia de amor próprio e lucidez.

As cartas que eu nunca entreguei talvez sejam ensaios para um folhetim de terceira. Talvez não sejam nada além de delírios tímidos. Só sei que elas existem e muitas foram extintas, quando havia tinta e eram de papel. As outras, virtuais, foram escondidas em alguma pasta de codinome idiota pra nem eu reconhecer.

Talvez, do que restou, eu organize por datas ou temas. Talvez as exponha em alguma galeria, com tinta e desenhos em volta. Talvez eu dê uma de Sophie Calle e tenha como tema da arte a minha vida, misturada com fantasia, pra ninguém no final saber o que é verdade e o que é mentira.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Zonas úmidas e um pouquinho de cartas de amor

Acabei de ler “Zonas úmidas, primeiro romance da escritora francesa Charlotte Roche. Logo em cima do título, em caixa alta lê-se “Mais de um milhão de exemplares vendidos.” Ótimo apelo. Peguei o livro vermelho na estante, sentei no anexo da livraria e já sabia que se não tivesse um texto bem impactante, não me prenderia à leitura. Não agora que ando ansiosa até os ossos , sem paciência com quase nenhum conteúdo. Acho que não estou numa fase muito curiosa, digamos assim.

Voltando ao tema, correndo os olhos pelas primeiras páginas, fiquei um pouco surpresa e logo fiquei animada pois parecia ter encontrado meu passatempo noturno para esses dias acelerados.

O tema central é sexo e só mesmo ele pra vender tanto livro de autoria estreante. Nem é sexo romântico ou qualquer coisa parecida com isso. A narrativa é de uma jovem que está em busca de prazeres carnais e aparentemente sem nenhuma culpa. A crítica do New York Times diz: “É preciso estômago forte para ler este livro”. Lançado o desafio, me juntei a um milhão de colegas também curiosíssimos.

Confesso que em alguns trechos fiquei um pouco surpresa, mas quase nada me deixou atônita e muito menos excitada. Pra ser bem sincera, achei triste a história. Muita solidão como pano de fundo, e isso sempre me incomoda. A verdade é que o livro não me chocou, tampouco me ameaçou um vômito. Tem trechos nitidamente demasiados, com carga excessiva de detalhes sórdidos, o que perde um pouco a graça. Me pega muito mais o sutil que o escancarado. E é bem isso o tempo todo. Feridas abertas, vaginas raspadas, um pouco de sujeira, de bissexualismo, dor e solidão, repito, e de tudo ali explicitado foi o que de fato me incomodou.

De qualquer forma acho que vale a pena essa história, que foi desacreditada por muitas editoras. Eis que está vendendo horrores e servindo de estímulo à leitura para muitos desinteressados ou por super ansiosos passageiros como eu. As feministas estão adorando a obra, vale ressaltar.

No mesmo dia que o comprei, estava com um exemplar de “Mil cartas de amor”...acho que o nome é esse. Achei fantástico o tema, pois reúne cartas verídicas de amor de personagens de todos os tempos. Sexo e amor são mesmo atemporais. Como o fazemos e vivemos é que muda um pouquinho ou será que sempre foi confuso e ás vezes dissonante? Será que a variação é só na linguagem ou o mundo está mudando os nossos sentimentos? Por fim, há a hipótese de ser absolutamente pessoal seu significado ou ainda sermos fruto da cultura que vivemos. Mas eu sempre digo que sexo, amor e estômago estão num nível complexo de entendimento. Instintivo , emocional ou genético, poucos explicam. O que sabemos é que são forças extremas. Melhor vivê-los.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Por favor,cativa-me.


Vira e mexe estou eu relendo os mesmos livros, ouvindo as mesmas músicas. Tem coisas que sempre nos emocionam, nos arrebatam como se fosse sempre uma primeira vez. Será que tomam novos significados?
Resolvi transcrever um dos diálogos mais lindos da literatura mundial. A gift...

Após um longo e sábio caminhar, o Pequeno Príncipe, dispôs-se a descansar...

“E foi então que apareceu a raposa:
– Bom dia – disse a raposa.
– Bom dia – respondeu educadamente o Pequeno Príncipe, que, olhando a sua volta, nada viu.
– Eu estou aqui, – disse a voz, debaixo da macieira...
– Quem és tu? – perguntou o principezinho. – Tu és bem bonita...
– Sou uma raposa – disse a raposa.
– Vem brincar comigo – propôs ele. – Estou tão triste...
– Eu não posso brincar contigo – disse a raposa. – Não me cativaram ainda.
– Ah! Desculpa – disse o principezinho. Mas, após refletir, acrescentou:
– Que quer dizer "cativar"?
– Tu não és daqui – disse a raposa.
– Que procuras?

– Procuro os homens – disse o Pequeno Príncipe.
– Que quer dizer cativar?
– Os homens – disse a raposa – têm fuzis e caçam.
É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?

– Não – disse o príncipe. – Eu procuro amigos.
– Que quer dizer “cativar”?
– É algo quase sempre esquecido – disse a raposa.
Significa "criar laços"...
– Criar laços?
– Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim.
Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas.
Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
– Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também.

Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol.
Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra.
Os teus me chamarão para fora da toca, como música.

E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo?

Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! – Mas tu tens cabelos dourados.

E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo, que é dourado, fará com que me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...

A raposa calou-se e observou muito tempo o príncipe:
– Por favor, cativa-me! disse ela.
- Eu até gostaria – disse o principezinho – mas eu não tenho
muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a
conhecer.
– A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa.

– Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma.
Compram tudo já pronto nas lojas.
Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos.
Se tu queres um amigo, cativa-me!

– Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno príncipe.

– É preciso ser paciente – respondeu a raposa

– Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva.
Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.
A linguagem é uma fonte de mal-entendidos.
Mas cada dia, te sentarás um pouco mais perto...

No dia seguinte o príncipe voltou.
– Teria sido melhor se voltasses à mesma hora – disse a raposa.
– Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais me sentirei feliz! Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!

Assim o pequeno príncipe cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:

– Ah! Eu vou chorar.

– A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não queria te fazer
mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...

– Quis – disse a raposa.

– Então, não terás ganho nada!

– Terei, sim – disse a raposa – por causa da cor do trigo.

Depois ela acrescentou: – Vai rever as rosas. Assim, compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te presentearei com um segredo.

O pequeno príncipe foi rever as rosas:[...]. “ E ao voltar dirigiu-se à raposa:

– Adeus... – disse ele.

– Adeus – disse a raposa.

– Eis o meu segredo:


É muito simples: só se vê bem com o coração.

O essencial é invisível aos olhos.”


“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”


Texto: SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Por Favor, Cativa-me [Título atribuído]
In: —. O Pequeno Príncipe. Trad. Dom
Marcos Barbosa. 48. ed. 15. impressão. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
Cap. XXI, p. 66-74.



terça-feira, 8 de setembro de 2009

Por sabê-la

E eu azul. E eu desejo de amarelo. Amarelo sol. Amarelo ouro. Amarelo flor. Amarelo sorte.


Não dá pra negar nossa natureza. Podemos abafar um tempo, permanecer na pressão, mas eis que emerge de cara feia a essência que deixamos de lado em prol do bom andamento das coisas.

Essa chama interna, pessoal e intransferível, é quase outra alma, mais rústica, menos civilizada. Ela causa tantas vezes desconforto, simplesmente por se sabê-la e sobretudo por se negá-la.

Quando cai a ficha que ficamos passeando tempo demais longe dessa parte, que nos reparte, acaba por nos aliviar o peito que a essa altura se comprime e nenhum comprimido mais faz efeito.

Aí a gente se dá conta que precisa rir muito mais, resistir muito menos. Que ás vezes não é simplesmente possível oferecer um sorriso e é pra isso que existem os feriados, férias e mudanças de rota. Começa a incomodar mais as faturas, o excesso de boletos, as cobranças, a cara do porteiro, a falta de respostas, de entendimento. Quando chega esse ponto, o corpo quase está doente porque os pés querem correr, mas estavam numa espécie de corrente.

Será que é com a primavera que chega também essa impaciência? Será que é junto com ela que floresce na gente essa imperiosa necessidade de ampliar horizontes? Pode ser.

Tem uma árvore aqui pertinho que é mágica pura. Apenas por alguns parcos dias ela se acende de mil flores amarelas e atrai o olhar dos distraídos. Falo dela porque acho que somos tão parecidos com essa natureza, que por quase todo o ano cumpre suas funções esperadas, mas em alguns dias, semanas ou meses, precisa florescer e encantar. E acho que quando a gente se permite esse “desvio”, essa beleza genuína de desabrochar desejos, desabotoar fechos, todo o resto é inundado desse prazer, como se fosse um combustível, uma reserva para o próximo inverno.

Meu tanque está ficando vazio. Já vejo a luz amarela acender. Ela não se parece com a flor que admiro, mas tem a mesma cor, só pra me dizer em mensagem subliminar que está chegando a hora de abastecer minha alma e eu por enquanto só digo, como o Zeca Baleiro, calma alma minha, calminha...ainda não é hora de partir.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Intuição

Hoje eu consigo interpretar esses sinais que me chegam e ainda indecifráveis, me tiram do normal. Deve haver mesmo muito mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Existem muito mais significados em alguns meros acasos do que podemos supor.

Todas as pessoas que me abalaram a alma, e foram poucas, enviaram sinais antes mesmo que eu as conhecesse. Não é absurdo, nem devaneio. Hoje falo com certeza que sendo anjos ou diabos, alguns seres se anunciam misteriosamente. Ou nem propriamente eles, mas o seu impacto. Uma espécie de energia que é emanada e só outro corpo específico recebe.

Você já parou no meio do seu dia, no olho do furacão, apenas por ouvir uma voz? Ainda sem entender esse som, algo ali pulsava? É a intuição. Impossível ler de cara, mas depois unimos as peças e montado está o quebra-cabeças etéreo. Pois é, se no turbilhão cotidiano uma voz te paralisa, deve haver muito mais do que um espírito assim nem tão evoluído como meu, possa entender. Ou não há o que entender. É contemplação. (Poucos querem saber o movimento do sol, seus graus, rotações, mas vê-lo e senti-lo preenche quase tudo em inúmeras almas)

Ouvir o nome de uma pessoa e de alguma forma sentir-se curioso, afoito, avulso por não saber quem é...já lhe ocorreu? Eu digo que há muito mais de cinema nessa vida tacanha do que admitimos normalmente. Óbvio que esses impactos não são freqüentes. Se fossem, teria outro nome. Não seria intuição. Esse chamado incômodo, misterioso, é o prenúncio de uma chegada, de uma transformação. Estaremos preparados?

Meu primeiro amor foi assim. Um menino lindo passou por mim. Poderia ser só mais um. Eu não entendi, mas incomodou profundamente e nossa relação durou mais de uma década e transformou nossas vidas para sempre. Grandes amizades também. Numa aula de sociologia, um casal me puxava o olhar. Um rapaz barbudo e uma moça diferente de todo mundo. Nesse mesmo dia passamos horas conversando e estamos na vida de cada um há mais de sete anos. Amém.

O que eu afirmo é que nosso corpo, nossos sentidos, entendem sinais antes de nossa consciência. Esse período meio REM, é o que entendo por intuição. É uma espécie de transe, letargia, dormência. Há um grito que ainda irá se propagar.

A vida é mágica e nós também. Não podemos negar ou fechar as portas para isso. Podemos mudar qualquer percurso. Mas se passarmos batido, o que terá ficado para trás?

Talvez essas relações sejam as chamadas “cármicas”. Não tenho conhecimento para falar sobre o assunto, mas respeito, porque a respeito dele, eu intuo, no meu torpor quase consciente pela busca de respostas, que ele existe e há fundamentos que pertencem ao campo sensitivo. Fogem da capacidade científica ou lógica. Estupidez é negar esse fato. ( Ou excesso de terra na carta natal, o que confere um ceticismo insuportável).

Ainda bem que já sabemos valorizar e entender a inteligência emocional. O mundo está evoluindo, eu creio.

E se há tanto para aprender e conhecer, que o máximo disso tudo seja agora. Seja lá o que de fato for, eu sou a favor do crescimento. Tenho mesmo meus braços abertos para o novo que me sorri e toca a alma. (Raro). É maravilhoso saber que há presentes guardados e amargos que nos enobrecem e transformam. Isso afinal é estar vivo e interagir. Quero minha intuição aguçada, não mais a nego. Ela me presenteia e protege. As outras coisas, depois dela, são os fatos que fogem a nosso controle ou vontade. Mas é nessa dança que a gente vira gente de verdade. Eu estou aprendendo. Um dia vou saber voar.


quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O zelo e o falo

O homem é o falo e a mulher é o zelo.

O homem vive mais a sua liberdade desde cedo. Tudo bem mais descomplicado e centralizado em seu pênis. O pau que ganha o mundo, sem culpa e curioso, desbravando, abrindo caminhos. O falo não tem culpa. Lavou, tá novo. O zelo tem a ver com a lua, cíclico, confuso e cheio dos significados que complicam tudo.

Não é a toa que Freud afirmou que meninas invejam o pênis. A ignorância geral discutiu, discordou desse conceito. Por Deus, mulheres não querem ter um pau. Se me aparecesse um no meio das pernas, seria um elefante branco. Mulheres querem essa simplicidade, tudo pra fora, explícito, sem tanto mistério e culpas. O falo é, portanto, o poder sem tanta dor de cabeça, sem tantas revoluções internas, sem leite nas tetas e criança no ventre.

O falo é Marte, o zelo é Vênus.

O falo é o guerreiro, o instinto. O zelo é o inexplicável, o terreno fértil da emoção, a maternidade.

O zelo é intrínseco, como os ovários. Tem fases fecundas, cistos, oscilações hormonais.

O falo é óbvio, o zelo sangra. Um jorra e outro gera.

O falo faz, o zelo pondera. Um quer resolver e outro quer ser ouvido.

O falo se distrai, o zelo observa. Um quer se isolar, o outro critica.

O falo quer ser admirado, o zelo precisa ser amado.

O falo precisa da diversidade, o zelo sonha com a fidelidade.

O falo é mais raso, o zelo é complexo.

O falo é consciente, o zelo é sonho.

O falo é um carro, o Zelo um vaso. Um quer velocidade, o outro quer ser preenchido.

O falo é um grito, o zelo é diálogo.

O falo é cachorro, o zelo é gato.

O falo é uma flecha, o zelo é caminhada. Um segue em linha reta, o outro sonha com possibilidades.

Seria muito mais simples, desde sempre, ter o poder de experimentar tudo e ser legitimado pelo mundo. Eis que a fêmea queimou os sutiãs, brigou com a família, sentiu tanta culpa e seguiu rumo ao casamento e a maternidade. Como se fosse pouco, foi inserida no mercado de trabalho e sem o falo, trabalha dobrado e ás vezes chora no expediente ou se apaixona pelo cara errado.

Viva a deusa Vênus, com seus poderes infinitos, mas sê-la encarnada não é fácil.. Assim, se pesquisa e se especula o universo zeloso, do amor-cuidado, que sem dúvida é imensamente mais rico e é dele que vem a vida. Ponto.

O zelo e o falo podem ser complementares, mas é preciso que se fundam em doses saudáveis e individualmente. Essa é a problemática do mundo, que hoje ruma para a solidão dos fatos mesmo sabendo que o zelo quer sempre cobrir o falo e ele, ser amado e seduzido pelo zelo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Pedaços

Definiste o fato

Fazendo pouco do afeto

Haviam moldes exatos

Para encaixar os seus modelos

O ímã era redondo,

Não coube na fôrma quadrada

A atração desse corpo

Forçava uma entrada

Nessa física absurda

A carne machucava

Não mudava de forma

Não encaixava

Pra acabar com essa agonia

Espatifou- se em mil pedaços

Agora não entra nada

Porque vaza do outro lado

Virou tudo

Um monte de pecinhas

Sem aparente significado

Mas quando colar tudo

Vai virar um lindo mosaico.

domingo, 23 de agosto de 2009

O peso e a leveza


Já o li inúmeras vezes mas, sempre que me deparo com alguns trechos, eles parecem tomar novo significado, como se eu não tivesse observado algumas nuances nas suas entrelinhas.

A insustentável leveza do ser é um livro complexo e ao mesmo tempo absolutamente próximo de nossos questionamentos mais profundos.

Para mim é uma obra – prima. Acho que ainda me pegarei relendo suas páginas por muitos anos da minha vida.

Um pouco sobre a obra:

O filósofo Nietzche defende o conceito do “eterno retorno”, ou seja, que todos os acontecimentos referentes a história da humanidade, e da vida de cada um, irão repetir-se diversas vezes. O autor do Romance “A insustentável leveza do ser”, Milan Kundera, confronta essa idéia, afirmando que o eterno retorno é o mais pesado de todos os fardos, e que anular por completo o fardo, torna o movimento humano tão livre que o destitui de qualquer significado.

A questão central do livro se apresenta:

Para onde ir? Em direção ao peso ou a leveza?

Por meio da dinâmica de dois casais, o autor nos mostra que todas as nossas ações são únicas, desprovidas de um sentido maior, e que nossa vida não acontece senão uma única vez.

Este é um romance sobre relacionamentos, mas que levanta questões filosóficas: será que a vida tem sentido? Ou será o niilismo defendido por Kundera a solução? Analisando o comportamento de seus personagens, ele levanta tais questões e deixa ao leitor a decisão final; afinal, ele mesmo defende que, qualquer que seja esta decisão, terá a leveza insustentável do ser.

Alguns trechos do romance:

"Tereza sabe que é mais ou menos assim o instante em que nasce o amor: a mulher não resiste a voz que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz".

"Todos nós temos a necessidade de ser olhados. Podemos ser classificados em quatro categorias, segundo o tipo de olhar sob o qual queremos viver.
A primeira procura o olhar de um número infinito de pessoas anônimas, em outras palavras, o olhar do público (...)
Na segunda categoria estão aqueles que não podem viver sem ser o foco de numerosos olhares familiares. São os incansáveis organizadores de coquetéis e jantares, mais felizes do que os da primeira categoria, que quando perdem seu público imaginam que a luz se apagou na sala de suas vidas. É o que acontece a todos, mais dia menos dia (...)
Vem em seguida a terceira categoria, aqueles que têm necessidade de viver sob o olhar do ser amado. A situação destas pessoas é tão perigosa quanto a daquelas da primeira categoria. Basta que os olhos do ser amado se fechem para que a sala fique mergulhada na escuridão (...)
Por fim existe a quarta categoria, a mais rara, a daqueles que vivem sob o olhar imaginário dos ausentes. São os sonhadores".


“Se cada segundo de nossas vidas repete-se infinitas vezes, somos pregados à eternidade feito Jesus Cristo na cruz. É uma perspectiva aterrorizante. No mundo do eterno retorno, o peso da responsabilidade insuportável recai sobre cada movimento que fazemos. É por isso que Nietzsche chamou a idéia do eterno retorno o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht).

Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza.

Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga; sob seu peso, afundamos, somos pregados ao chão. E, no entanto, na poesia amorosa de todas as épocas, a mulher anseia por sucumbir ao peso do corpo do homem. O mais pesado dos fardos é, pois, simultaneamente, uma imagem da mais intensa plenitude da vida. Quanto mais pesado o fardo, mais nossas vidas se aproximam da terra, fazendo-se tanto mais reais e verdadeiras.

Inversamente, a ausência absoluta de um fardo faz com que o homem se torne mais leve do que o ar, fá-lo alçar-se às alturas, abandonar a terra e sua existência terrena, tornando-o apenas parcialmente real, seus movimentos tão livres quanto insignificantes.

O que escolheremos então? O peso ou a leveza?

Parmênides levantou essa mesma questão no sexto século antes de Cristo. Ele via o mundo dividido em pares opostos: luz/escuridão, fineza/rudeza, calor/frio, ser/não-ser. A uma metade da oposição, chamou positiva (luz, fineza, calor, ser); à outra, negativa. Nós poderíamos achar essa divisão em um pólo positivo e outro negativo infantilmente simples, não fosse por uma dificuldade: qual é o positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondeu: a leveza é positiva; o peso, negativo.

Tinha ou não razão? Essa é a questão. Certo é apenas que a oposição leveza/peso é a mais misteriosa, a mais ambígua de todas.”